Anos sessenta, estávamos numa altura em que havia três opções de ensino: O Industrial, o Comercial e o Liceal.
Por muito elitista que isto pareça hoje em dia, a ida para cada uma destas opções correspondia a uma certa divisão por classes sociais. A primeira grande triagem já tinha sido feita, havia crianças que ficavam só com a 4ª classe. Para o liceu iam os meninos que pertenciam a uma classe social média ou alta.
Assim, porque embora com pouco dinheiro, eu pertencia à tal
classe média, e tinha ficado aprovada no
exame de admissão, lá fui eu para o Liceu de Oeiras. A bata que era preta
tornou-se branca com um pequeno losango bordado com as letras L N O.
Ano novo, pasta e cadernos novos, e uma carteira para guardar o
passe de comboio.
O
passe era necessário, uma vez que este era o único liceu existente na zona.
Assim, de Cascais a Algés, um bando de adolescentes e pré adolescentes enchia
as estações de comboio, raparigas da parte da manhã e os rapazes da parte da
tarde.
Voltemos
então ao Liceu de Oeiras. O edifício era amplo, bem cuidado, rodeado de espaços
verdes bem tratados. Quando se entrava no átrio, tínhamos à esquerda a
secretaria, à direita o posto médico e numa secretária, sentado, o Sr. Dias
pai, que devia ser o chefe dos contínuos. (também havia o Sr. Dias filho).
Farda azul escura com botões dourados no Inverno, farda cinzenta quando o tempo
começava a aquecer, lá estava ele a zelar pela compostura adequada na entrada
das alunas. Depois, ultrapassado o átrio, logo na primeira porta à esquerda
ficava a Reitoria, onde logo de manhã o Reitor, muito direito na sua bata
branca nos esperava. Era chamado pelo “dez para as duas”, devido à posição dos
pés
A cada ano de escolaridade devia corresponder um corredor, e
havia uma sala para cada turma, e um contínuo responsável por cada corredor,
acho que eles competiam um pouco para que o seu corredor funcionasse o melhor
possível. Saíamos da nossa turma para a sala de desenho, para os laboratórios de
ciências ou de física, ou para o ginásio. Um bufete onde se compravam umas belas
bolas de Berlim cheias de creme, e uma papelaria, eram os serviços oferecidos
aos alunos.
Aquela organização funcionava e nunca a senti como muito pesada,
talvez porque era entendida por mim e, ao ser entendida, sabia como a gerir,
para o bem e para o mal…
Como em todas as escolas havia vários tipos de alunos, os bons
alunos, quase sempre uns chatos. Os alunos médios, que sem grande esforço lá se
iam safando, mas que se divertiam com a escola, e com as oportunidades de
socialização que ela oferecia, (era nesta categoria em que me inseria). Depois,
havia os maus alunos, que se deviam divertir imenso, e de quem os médios tinham
um bocadinho de inveja, pois gostariam de ser como eles, mas não tinham
coragem.
E que belas oportunidades de transgressão existiam. Sem estar
com grandes pormenores, essas transgressões como é óbvio, variavam com a idade
dos prevaricadores, embora os locais fossem os mesmos. A primeira grande oportunidade começava logo
no percurso da estação para o liceu, em que havia dois caminhos paralelos: A
estrada normal e os "montes" como chamávamos a uns terrenos baldios.
Evidentemente eu gostava mais de ir pelos montes!
Já dentro do edifício, a mata também era um bom refúgio.
Servia para não ir a alguma aula intermédia, para ler livros
pouco aconselhados, fumar um ou outro cigarrito, e conversar ou namorar com os
rapazes do lar dos filhos dos oficiais, que ficava do outro lado da rua.
A correspondência com os rapazes, que da parte da tarde se
sentavam na nossa carteira, dava também muita “pica” e estimulava a nossa
criatividade para que os bilhetes não fossem descobertos!
Como estamos a falar de transgressões vou relatar dois episódios
que me marcaram:
O primeiro aconteceu quando tive uma negativa num ponto de
geografia. Não sei o que me passou pela cabeça e não quis que o meu pai
assinasse a prova, para tomar conhecimento da ocorrência. A professora tanto me
pressionou que resolvi falsificar a assinatura dele. Aquilo não saiu muito
perfeito e o meu pai foi chamado ao liceu. Ficou danado, transtornado mesmo! Até
apanhei uma grande sova. (Foi das poucas vezes em que ele me bateu).
- Se querias fazer essa porcaria, ao menos tinhas feito isso bem
feito, para ninguém dar por nada, disse-me ele.
O segundo episódio aconteceu um pouco mais tarde, penso
que no 5º ano. Devia ser primavera, as hormonas andavam em ebulição e eu tinha
levado para mostrar às colegas um livro do meu pai. Um livro fabuloso
intitulado “The Family of Man”, onde estavam compiladas fotografias dos maiores fotógrafos
da época. Retratavam a vida humana em todas as suas fases, namoro, casamento,
nascimento, infância, velhice e morte.
Evidentemente
as que mais me interessavam eram as do namoro. Nem pude esperar pelo intervalo,
e na aula de ciências, no anfiteatro, comecei a seleccionar o que queria
mostrar. Tão absorta devia estar que o professor deu por isso:
-
Ana Maria, mostre-me o que está a ver.
Fiquei
aterrorizada. Devo ter pensado que ele me ia “apreender” o livro (que palavra
tão horrível, mas era a usada nessas ocasiões). Ainda tentei justificar que não
era nada, mas ele não se demoveu. Quando o vejo caminhar para mim, sentei-me em
cima do livro. Como devem estar a imaginar, foi uma grande fita em que o
professor saiu vencedor. Eu chorava de raiva e de medo do que me ia acontecer.
Depois
de ser induzida a ir beber água para me acalmar, quando regressei a campainha
estava a tocar. A aula estava terminada.
Um
grande dilema se me colocou: Enfrentar o meu pai, ou humilhar-me a ir pedir o
livro. Apesar da humilhação lá optei pela segunda hipótese:
-
S’tor, dê-me o livro que é do meu pai.
- Mas o que é que a menina estava a ver?
- Eram só uns beijinhos, respondi.
Não sei se entretanto ele o tinha folheado, ou se achou
graça à minha resposta, mas o que é certo é que o livro me foi devolvido com
uma pancada na cabeça e um leve sorriso. Mas foi um grande susto!
Só para recordar, vejamos como era ingénuo o Amor
nos anos sessenta!
Continuando, os anos lá foram passando, entre o prazer
que me dava andar no Liceu, enquanto espaço de socialização e de aprendizagem
informal e o desprazer que me davam a maior parte das aulas. Os documentos
escritos começaram a não ser tão valorizados lá em casa e por isso são quase
inexistentes, mas acho que escrevíamos pouco, mesmo nas aulas de Português. Os
testes seguiam quase o mesmo esquema dos da primária: - Um Texto de autor, seguido de
perguntas de interpretação; Um módulo destinado a avaliar conhecimentos sobre
Gramática; uma parte final de Redacção.
Quando recordo os professores que me marcaram, não posso deixar
de referir três nomes: João Palma Ferreira - professor de Inglês; Maria Luísa
Gravata – professora de Português e José Fernandes Fafe - professor de
História, mas o porquê não sei bem… talvez por serem pessoas de uma grande
cultura que partilhavam connosco, não se limitavam a seguir o manual, traziam
para a sala problemas e temas que serviam para discussão e argumentação. Muitas
vezes traziam até autores que não faziam parte do programa, como foi o caso de
João Palma Ferreira que nos leu poesias de Manuel da Fonseca, poeta de que eu muito gostava (e que o meu pai por vezes recitava). Lembro-me dele ter ficado muito admirado por eu as conhecer.
Quando chegou o 5º Ano, era a altura de tomar a nossa grande opção: - Escolher as alíneas relacionadas
com as áreas de Letras ou de Ciências, para prosseguir os estudos. Confesso que
andava bastante indecisa.
Na altura estava interessada num rapaz, daqueles que se
considerava “um rapaz mau de famílias boas”, isto correspondia
normalmente a um mau estudante, que preferia a borga ao estudo.
Ora esse rapaz
andava a estudar em Santarém, na Escola de Regentes Agrícolas, era forcado e
como aliciante máximo, a escola era mista e funcionava em regime de internato.
Tudo boas razões para despoletar uma vocação! Além disso era um curso médio, o
que queria dizer que não precisaria de continuar no Liceu. Infelizmente o meu
pai não apoiou essa vocação, aconselhando-me, se gostava tanto de agricultura,
a continuar a estudar para ir para o Instituto Superior de Agronomia.
A resolução do problema vocacional aconteceu no final do exame
do 5º Ano, em que uma “deficiência” a Inglês e uma “ deficiência” a Matemática,
me obrigava a repetir parte desse ano, se quisesse continuar os estudos.
O
período dos exames era extremamente traumatizante para mim. Aconteciam no mês
de Junho, no final das aulas. Fazíamos exames no 2º Ano, no 5º Ano, depois no
7º, seguido de admissão à Faculdade. A matéria era toda a que tinha sido dada nos anos de cada ciclo.
O calor apertava, a praia chamava por mim, e como se não bastasse, a minha mãe punha-me a estudar no sótão para não me distrair. Eu de facto não
tinha criado hábitos de trabalho sistemático!
Meu Deus que falta de ar… a maior
parte do tempo era passado empoleirada numa prateleira, com a cabeça de fora de
uma pequena janela no telhado, vendo quem passeava na Avenida Marginal.
Depois da prova
escrita ainda havia um intervalo para esperar pelas notas, no meu caso ia
sempre à oral, e lá me safava. Mas com este problema das duas deficiências e
como a vontade também não era muita, considerei a possibilidade de aproveitar
um “dom natural”, que tinha: - a facilidade de estabelecer relações com
crianças. Aconselhada por umas amigas Educadoras de Infância, lá fui
candidatar-me ao Curso.
Esta Redacção feita no 2º Ano do Liceu, ajuda a ilustrar a minha
vocação ainda latente…
(Embora de difícil leitura, aconselho um pequeno esforço, pois é um verdadeiro "mimo literário" )
:-)» Estás quase-quase a fazer-me escrever as minhas memórias destas vidas patuscas... Afinal, um testemunho tão relevante como outro testemunho qualquer, mas muito preenchido de vida, não é? Ainda para mais a nossa... Vou pensar melhor nisto... ;-)»
ResponderEliminarDevo dizer que adorei a redação. Já revelavas, nessa altura, uma grande capacidade de reflexão e de conhecimento sobre as exigências do futuro.
ResponderEliminarAcho lindo o poema do James Joice escolhido e as fotos do livro que eu também tinha e acho que já não tenho.
A tua memória relativa às vivências do liceu é fantástica e sentares-te em cima do livro, uma estratégia muito inteligente. Obrigada pela partilha e ainda bem que as férias já acabaram.
atenção o anónimo sou eu, Manuela
ResponderEliminarMinha amiga Manuela anónima, o esforço que fazemos para dominar os instrumentos usados pela humanidade, como o Freinet preconizava é de louvar. Esta resposta já desapareceu duas vezes. A redação é mesmo a minha cara, o que eu gosto de estar no meu lar...também acho que me sentei na revista porque pensei que o professor não a tirava porque tinha de mexer no meu rabo.
EliminarOlá Ana. Gostei imenso da tua passagem pelo liceu de Oeiras. Fez-me lembrar os meus tempos vividos no Colégio Infante de Sagres, em Mouriscas, que tinha um internato para receber alunos vindos de fora. Apenas diferente, o espaço geográfico e a população, mas todos os outros detalhes de organização, personagens e compostura eram iguais, como todos sabemos. Apesar de tudo guardo boas memórias deste período da minha vida. Quanto à redacção, adorei e está mesmo "Um Mimo"! Obrigada!!!
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