Na Calçada da Tapada (2)

Bem, cá estou de novo depois deste interregno natalício.

Não lhes vou esconder que o Jardim de Infância da Calçada da Tapada me tem dado que pensar. Tantos anos lá e tantas dificuldades em escolher o que escrever.

Isto, porque foram muitos anos, mas com algumas interrupções pelo meio.

E depois de cada interrupção o recomeço era mais difícil para mim. Estava mais velha, tinha havido alterações, as expectativas que as pessoas punham em mim eram cada vez mais altas e inconscientemente tinha receio de não conseguir corresponder.

Então o que relatar? Pensei, pensei e fez-se luz. Já não é mau!

Mas antes desse relato, e depois do texto sobre o MEM, apetece-me dizer algumas coisas, do muito que tenho informalmente ouvido sobre o “Movimento”:

  • Aquilo é uma espécie de seita;
  • É um grupo muito fechado;
  •  É um Modelo pouco exigente com as aprendizagens;
  • É um Modelo muito exigente com as aprendizagens, as crianças só trabalham, só trabalham;
  • São uns líricos;
  • É só expressões;
  • E projectos;
  • É um Modelo muito rígido;
  • É um Modelo que dá muito trabalho, aos professores…;
  •  Aquilo da democracia é uma balela, quando forem crescidos logo aprendem a ser democratas…
  • E tantos "instrumentos", cansa só de olhar.

É óbvio que tal como as crianças, os adultos se apropriam dos conhecimentos, e da cultura de modos diferentes, consoante a sua sensibilidade, valores, maturidade.

Isso também é verdade para um Modelo Pedagógico que integra professores/ educadores de diferentes formações iniciais, níveis de ensino, idades, e percursos de vida diversos. Embora havendo uma matriz comum, há diferenças de “estilo” se calhar bem visíveis.

Podem não acreditar, mas a vida nas escolas é muito dura. Temos é a sorte de ser um grupo, de nos confrontarmos, de mostrar o que fizemos, de discutir e em grupo aprender uns com os outros, fortalecendo-nos assim.

Para aligeirar o assunto (ou talvez não), vou-lhes mostrar dois escritos muito antigos que a minha amiga Manuela Castro Neves me escreveu. (espero que ela não fique zangada comigo)


 Postal – Mandado quando esteve em Fátima numa formação. Era Ministro Roberto Carneiro.






 Agora, antes de passar ao segundo escrito, uma carta, uma pequena explicação sobre um dos factos nela referido.


Por vezes algumas de nós, brincávamos a propósito das decorações que se faziam nas escolas e Jardins de Infância (se calhar ainda se fazem). Houve uma época em que em quase toda a parte, havia um tronco de árvore que consoante a época do ano era decorado pelas professoras e crianças.

 A brincar nós chamávamos a essa decoração a “Pedagogia do Galho”.

E aqui vai a transcrição da carta:

“Ana

Liguei 20 vezes para tua casa. O telefone estava insistentemente interrompido. Quero além do abraço dizer-te isto:

Vi hoje - ……… (localidade), com chuva, desabrigo – um dia positivo sobre a pedagogia do galho.

O galho saia gentilmente de um vaso no Hall da escola. Em fila, as crianças levavam na mão florinhas de papel. Iam com doçura coloca-las no galho.

(…) Fiquei a pensar: Como são ternas as crianças, como é bonita a Primavera! Como é bom ter um galho.

Vi também um Jornal de Parede

Notícias     Parabéns    Novidades    Não Gosto

Não percebi a diferença entre Notícias e Novidades.

Mas percebi para que serve a coluna dos Parabéns e do Não gosto.

Parabéns – “A minha tia fez anos”. “O meu tio fez anos”. “ O meu irmão fez ontem anos”. “Amanhã a minha avó faz anos”

CONCLUSÃO – Nas zonas degradadas toda a gente faz anos!

Não Gosto – “Não gosto de peixe”. “Não gosto de andar de camionete”. “Não gosto de jogar à bola” …

CONCLUSÃO – Ninguém não gosta de algo que se passa dentro dos muros daquela escola.

(…) Os grupos não têm vida. Como pode um jornal falar de uma coisa que não há?

Nota final. Isto deprime-me. É mesmo a sério. Não se trata de ver os “instrumentos” ou as instituições desvirtuadas. Trata-se de ver a falta de sentido que as “nossas coisas” podem ter na mão dos outros.

Para acabar

Parabéns – O 25 de Abril está quase a fazer anos.

Não Gosto – Não gosto que chova. Molha.

Em - ……… (localidade), molhava a sério. Molhou-me! Que chatice”. (…)


Nota: Com a evolução sofrida ao longo dos tempos,houve necessidade de modificações para ajudar a clarificar conceitos inerentes a instrumentos de trabalho. Neste momento chamamos Diário de Turma ao que aqui ainda é chamado "Jornal de Parede"


Depois deste intróito, aqui vai o resultado da luz que tinha iluminado a minha cabeça e espírito sobre o que descrever.

Uma das grandes vantagens da escola pública de qualquer nível de ensino, é a coexistência de crianças de diferentes níveis sociais. No entanto, quando começava o trabalho, normalmente só as crianças mais desfavorecidas frequentavam o Jardim de Infância.

Foi assim na Ameixoeira, foi assim em Alcântara. Normalmente também havia poucas crianças. E eu queria muitas crianças, e de vários estratos sociais!

Outra das minhas preocupações era a relação com as famílias, e a abertura da escola ao Meio envolvente.

Assim aqui vão algumas das estratégias usadas:

Um desdobrável que foi distribuído nas caixas do correio de Alcântara:






Penso que deu algum resultado, apareceram mais crianças.

Agora para falar das estratégias usadas para estabelecer a relação com as famílias, e a abertura da escola ao Meio envolvente, vou socorrer-me do que escrevi no Relatório de Actividades do Ano Lectivo 1992/1993.

“Desde há quatro anos, que no nosso Jardim de Infância temos vindo a desenvolver trabalho no sentido dos pais das crianças entrarem na escola, saberem o que se faz, valorizarem o trabalho das crianças e entenderem que no Jardim de Infância também se trabalha.

Grande parte do nosso objectivo foi conseguido, entram, conversam connosco, servimos de confidentes, escriturárias no preenchimento de papelada difícil.

Participam de boa vontade em pequenas ajudas pontuais (passeios, festas, etc.).

Foram-se conhecendo uns aos outros, porque embora todos da mesma Freguesia, não se conheciam entre eles, pois em Alcântara, cada rua, vila ou pátio funciona como um núcleo fechado.

Neste momento podemos considerar que há um grupo de pais/mães com uma organização informal a que quase podemos chamar cooperativa.

Há uma certa organização no transporte das crianças. O nosso “avô Carlos”, como todos lhe chamamos, encarrega-se de trazer de carro os meninos da Rua da Cruz, sem se esquecer dos “ciganitos”.

Da Vila Teixeira há sempre um adulto para vir buscar o “batalhão”, e até os do Casalinho, dividem entre si essa tarefa.

Roupa usada é trazida para a escola e vai passando de uns para outros.

Mas o que gostam mesmo é do convívio que a ida à escola proporciona. Começam a chegar muito antes das 15.30 h, sentam-se nos bancos do corredor, numa mistura de sacos de plástico com compras, casacos e crianças a gatinhar e a mamar.

Conversam da cotação do mercado, da vida difícil, do último escândalo…

Notam as faltas das crianças e querem saber se estão doentinhas, normalmente pretexto para falar mal do posto da “caixa” e bem do hospital, local preferido para o tratamento de todas as doenças.

As crianças envolvidas por este meio caloroso e barulhento são também muito participativas e barulhentas.

Apesar de todo este envolvimento, ainda não nos sentíamos completamente satisfeitas.
O corredor de acesso às salas está decorado com trabalhos das crianças, nas salas o mesmo. Por todo o lado pinturas, desenhos, histórias, relatos de passeios, textos, experiências, dão conta do trabalho efectuados, e de pequenos projectos desenvolvidos, mas talvez porque provenientes de classes sociais em que o hábito de leitura é quase inexistente, esta informação não funcionava como nós queríamos. Quase não olhavam e não liam.

Fomos verificando que o que lhes despertava mais a atenção eram cartazes com fotografias, e pequenas descrições das mesmas escritas por nós.

Assim pensámos no início deste Ano Lectivo:
  1.        Continuar a focalizar no meio envolvente da escola a nossa acção educativa.
  2.     Experimentar (…)
  3.     Participar (…)
  4.     Experimentar estratégias de comunicação escrita com as famílias – Jornal Escolar.


Assim surgiu o “Notícias do Jardim de Infância”, saindo um primeiro número trimestral (1º período), e cinco números mensais.

Este jornal começou por ter características bastante diferentes dos outros Jornais escolares que já tínhamos feito.

O primeiro número foi inteiramente escrito por nós educadoras. Em linguagem acessível, com fotografias e tendo a capa e a última pagina individualizada – cada criança desenhou a sua.

Quando ficou pronto, foi lido às crianças que rapidamente se apropriaram do seu conteúdo. 

Foi para casa e as crianças foram incentivadas a “ler” para as mães.

A pouco e pouco a nossa escrita foi-se diluindo, passando as crianças a participar cada vez mais activamente. (…)

Em Junho, com o dia da criança, os quinze dias de praia, a participação na festa da escola não houve jornal e esse pesar foi sentido e manifestado.”


Como de costume, o texto já está muito grande, mas agora que encontrei um rumo, brevemente vamos entrar numa fase menos descritiva.



7 comentários:

  1. Ana, é sempre um enorme prazer continuar a ler o que escreves sobre o teu percurso, pela forma tão genuína e completa, como o fazes. Bom seria que muitas outras Anas surgissem no mundo do Jardim de Infância. Que este teu blogue seja inspirador/motivador! Um abraço.

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    1. Maria Júlia és uma querida. Tive o prazer de trabalhar com excelentes professoras do
      1º ciclo, e tu foste uma delas. Acho que a Rosinda também ia gostar de ler mas perdi o número do telefone, um destes dias vou lá bater à porta. Beijos.

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  2. tá visto que decidiste escrever um livro em forma de blogue. É muito melhor que o contrário, e aí reside o meu ódio a uma data de escrevedores e escrevedeiras que habitam esta coisa, em forma de país. Claro que vou lendo isso tudo que viveste, mais o que me contaste, mais o que me contaram, mais o que eu imagino ... e assim chego a ver este TEU todo. É muito interessante, a meu ver (como dizem na televisão) de que massa são feitas as pessoas. Acabei de ler esta tarde as 1084 páginas que o Luandino Vieira (que é apenas mais um Zé) para saber como é que se vivem 14 anos de prisão por ter escrito um livro de contos. A sorte que estes gajos agora têm, escrevem e não são presos ... se eu fosse como "eles", diria, mas deviam ser.

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    1. Já sei porque é que andaste a ler o Luandino Vieira. Por vezes dizemos mal das redes sociais mas se não fossem elas como é que tínhamos conhecimento do que os amigos tão bem escrevem. Tenho lido todos os textos da "Ágora" e confesso uma coisa: GOSTO, acho que não devs ser preso.

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  3. Lembro-me muito bem da tua sala na Calçada da Tapada, do gosto de lá entrar e daquela organização tão profissional e ao mesmo tempo tão maternal. Lembro-me também do vosso primeiro jornal e das iniciativas sem fim para fazer entrar a família. É muito bom agora ter a história mais completa e rever as imagens que tanto me encantaram na altura. Leio, releio este blogue e digo: A Ana é uma grande educadora. AINDA BEM QUE, ALÉM DISSO,tem esta vertente de «historiadora», de arquivista e esta capacidade de nos revelar tudo em linguagem fluída. Se não fosse assim, como é que eu me poderia rir com as minhas próprias missivas? Muito obrigada, pois

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. É dia 15 de novembro, liguei o aquecedor pela primeira vez este inferno. Meteorologicamente ainda é só inverno, mas eu antecipo o ódio às camisolas às meias às mantas. Tapo-me e tenho inveja dos ursos e das rãs que não sofrem com o frio absolutamente nada. Nem sabem que está frio e eu tenho da saber. E foi assim nesta estreia de aquecimento made in EDP-China li o que escreveste do fio ao pavio. Vais-me contando, mas isto lido tem outra graça. E como ninguém escreve pró boneco, há que retirar as devidas ilações ... treta de paleio de telejornal... Ainda bem que te vais continuando através dos outros, pois agora vou ter de escrever outras para eliminar o sexismo ... o tamanho é outro, as vidas muito menos outras, mas és tu ... e isso é bom.Enquanto esta coisa não atinge o nível de país (ainda somos uma hipótese de), e as pessoas o de pessoas, teremos de ir ajudando, quem quer ser ajudado. E prontos ... fico à espera do resto, até acabarmos. Estava para escrever obrigado, mas ficava mal, no contexto.

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