Nuno Bragança
“Quando eu tinha quatro anos
e um rescaldo de doença, puseram-me diante de uma máquina de escrever. Travaram
essa “Smith-Corona” na posição de escrever maiúsculas e disseram-me:
- “ Carregue com força.
Aqui.”
Carreguei, houve um estalido.
Depois mostraram-me o papel envolvendo o rolo: tinha aparecido lá um sinal
idêntico ao que estava pintado na tecla em que eu tinha carregado.
Aquilo fascinou-me. Comecei a
carregar nas várias teclas e a ver aparecerem no papel os sinais pretendidos.
Quando perguntei que sinais
eram aqueles, disseram-me: “ São letras.”
Quando eu perguntei para que
serviam as “ letras” disseram-me:
- “ Para desenhar palavras.”
Foi das coisas mais
maravilhosas que ouvira até ali: era então possível fixar num papel o que as
pessoas diziam, e pensavam.
Ao fim de uma semana eu já
sabia “desenhar” várias palavras. E queria tanto aprender mais e mais que a
minha mãe (que tivera a ideia inicial) apanhou um susto, e tentou fazer-me
esquecer aquilo com medo que “ fizesse mal à cabeça do pequeno.” É o esqueces.
De tal maneira, que aprendi a ler escrevendo. E passei da máquina ao lápis,
apenas com a limitação de só saber escrever maiúsculas.
Comecei a escrever histórias.
Depois cartas. Um dia descobri (ao escrever uma carta de um amigo imaginado a
outro amigo imaginado) que era possível usar o desenho das palavras para
desabafar.
Isto continuou, até que
passei a estudar segundo os métodos oficiais.
Pouco a pouco fui perdendo o
gosto pela escrita. Sobretudo quando as minhas redacções começaram a ser
censuradas, e asperamente: não correspondiam ao “ como deve ser ”.
O liceu foi (quase) o golpe
de mestre. Obrigavam-nos a ler e trabalhar textos antigos, que nada tinham a
ver com o mundo imediato em que vivíamos. Quando tocou a esquartejar Os
Lusíadas (ah! As orações intercaladas!) cheguei à conclusão de que entre eu e o
que aparentemente dava pelo nome de “ literatura” havia um abismo: o da
abominação que essa palavra passara a significar para mim.
Do encanto inicial,
restava-me a memória dos tempos em que escrevia as tais histórias, as primeiras
cartas, Continuei a escrever cartas ao meu modo. E a meu modo fui escrevendo um
Diário onde apontava com indicação da data e lugar coisas importantes: coisas
que aprendia pelos sentidos, ou sentidas no interior de mim. Um dia escrevi um
desses apontamentos, e ao contrário do costume, antecedi-o de um título. Sem o
saber, estava a escrever um capítulo do meu primeiro “romance”, A Noite e o
Riso.
Quando vejo o avanço escolar
no campo do desenho livre, pergunto-me por que diabo é que não se faz o mesmo
em matéria de composição escrita?
Diz-se que a literatura é uma
arte moribunda. Por causa da TV, do cinema comercial, das bandas desenhadas?
Calma, amigos. Enquanto houver pessoas haverá palavras. Eu creio no Verbo, alfa
e ómega. Se a palavra se está empobrecendo, isso resulta da falta de
criatividade no ensino. Mas quando a palavra empobrece, embota-se um dos pólos
mais vitais na pessoa humana. E as sociedades massificadoras (por
totalitarismos dos mais variados) reduzem a força das palavras. Compete a quem
ensina lutar contra essa intoxicação.
Quem ensina tem a excitante
profissão de ajudar o porquê que cada criança traz ao mundo. Um porquê que
compete a cada um de nós servir até ao fim das nossas variadíssimas missões”.
In “ Palavras” – Revista da Associação de Professores
de Português n.º 1, Setembro/ Dezembro de 1980
Gostei muito deste capítulo. E aprendi,também.Pena não teres sido minha professora.Também tive um Diário Mas o meu era fechado com uma chave pequenina para ninguém ler.,e eu trazia-a ao pescoço,no fio.Imagino que os teus escritos fossem mais literários que os meus ,visto que o título "A noite e o riso " e o título de um romance do Nuno Bragança.Os meus eram romanticos,de namoros,mãos que se encontravam e acho que essas emoções ficaram em mim guardadas para toda a vida.Um dia deixei o Diário aberto .A minha Mãe leu-o.Acabou nesse doa o diário e a confiança nela.
ResponderEliminarMaria Carlos, o texto é de do Nuno de Bragança como está identificado, só que foi retirado da Revista da Associação de professores de Português. Eu li o romance, mas gosto muito deste texto e achei que vinha a propósito. Os textos a roxo, nunca são meus, são tentativas de complementar ou teorizar o que foi referido antes.
ResponderEliminarNunca tive um diário, e os meus escritos eram muito pouco literários como vais ter oportunidade de ver lá para diante.
Promete! Bj
ResponderEliminarCarlos, quando escrevemos um diário, escrevemos para nós é intimo. Outros tipos de escrita, sejam em suporte de papel ou digital, quando são partilhados é óbvio que gostamos que os outros leiam e se possível gostem.
ResponderEliminarObrigada.Um abraço