As Minhas Senhoras

Quando penso nas senhoras/alunas, há uma cantiga que me vem ao pensamento embora não tenha nada a ver com elas. É a “Valsinha” do Chico Buarque. Quando as vejo chegar, a cantiga parece soar aos meus ouvidos: 

“Então ela se fez bonita

Como há muito tempo não queria ousar

Com seu vestido (…)

Cheirando a guardado de tanto esperar (...)


E isto porque é domingo e porque há “escola”.
E a escola é tão importante para elas que se aperaltam todas!


São quinze. A maior parte delas são pontuais, mas não assíduas. A assiduidade muitas vezes é condicionada pelos turnos de trabalho em empresas de limpeza.



Há três senhoras portuguesas, uma alentejana, bem-disposta, muito despachada. Vem sempre com a amiga e vizinha, esta do norte, mais fechada, Juntas fazem a sua caminhada diária, vão beber o seu cafézinho. Separam-nas as opções religiosas. Uma católica festiva, outra da igreja evangélica. A terceira é uma mulher triste, penso que muito solitária e deprimida. 



Motivações diferentes as trouxeram à “escola”: Fomos a pouco e pouco conhecendo infâncias a ajudar a família, ou as escolas longe, que impediram uma escolaridade com sucesso. O pouco que aprenderam foi sendo esquecido. 



A D. Joana, a alentejana, mãe solteira, foi costureira. A costurar criou a filha, conseguiu dar-lhe um curso superior. Tem duas netas gémeas também formadas. Continua a trabalhar, mora sozinha na casa onde sempre morou, mas a casa da filha é em frente. Ajudou a criar as netas, continua a ajudar a filha. É penso eu, aquilo que se chama uma família feliz.
Uma motivação a trouxe para a “escola”: Uma das netas ia casar com um “finório de Cascais”

-"Calcule que a avó do noivo é uma velha, mais velha do que eu, tem para aí uns noventa anos. Mas faz poemas… vai ler um poema dela.

Não posso fazer má figura disse-me ela. Até ao casamento tenho de aprender a ler!"


A D. Fidélia, a amiga, disse que a escola era longe, fazia muito frio de inverno, faltava muito, e ao fim de lá andar muito tempo, a professora disse que ela não tinha grande cabeça para aprender! 

Cresceu, casou, teve filhos e trabalhou muito tempo em casa de uma professora, “das importantes”, era professora universitária! Até lhe estava sempre a dizer para ela ir aprender a ler… “Mas não tinha tempo, e se calhar também não tinha cabeça. Se em nova não tinha dado para os estudos, depois de velha ainda era pior”

Eu acho que veio para não ficar atrás da amiga, mas a desculpa que deu foi:

- "A maior alegria que um dia podia ter, era ler a Bíblia lá na minha Igreja! Se não conseguir ler tudo, posso ler um Salmo, sempre é mais pequeno …"


A D. Célia é daquelas senhoras que parece estar sempre a pedir desculpa por existir.Do que me foi contando e, do que me fui apercebendo, penso que depois de ficar viúva, foi muito enganada por uma filha. Como não sabia ler confiou!
Ficou sem dinheiro, ia ficando sem casa… penso que alguém do Banco reparou  que alguma coisa não estava bem e a ajudou, conseguindo em parte reverter a situação. Mas a mágoa ficou. E a solidão e, também a vergonha de não saber ler para se defender. E a depressão profunda instalou-se. Para a ajudar a vencer a depressão, a assistente social arranjou-lhe uma ocupação - como voluntária ajuda na creche Paroquial. Junto das crianças é um pouco menos infeliz.



- "A maior alegria que eu podia ter, era um dia chegar uma carta com o meu nome escrito Célia. Mas com letras diferentes das letras das contas para pagar."


Um dia disse-me: 

- “Eu ando sempre a pensar nas letras. Eu até acho que elas falam comigo.

Qualquer dia ainda sou atropelada. Quando ando na rua, nas tabuletas da estrada vejo letras. Vejo uma que começa com uma letra do meu nome. Podia ser Célia, mas é Carcavelos.

Uma das camionetas que eu apanho vai para Sintra, eu já sei que tem a mesma letra que S. Domingos de Rana, escuso de perguntar. A que vai para o hospital também começa como o meu nome diz Cascais.”


Estas três senhoras não moram no bairro. A estrada faz a separação. O sítio onde moram começou por ser aquilo que se chama “de génese ilegal”. Aí a pouco e pouco, foram construindo as suas vivendas. Agora está já tudo legalizado.

Depois há a D. Clara, moçambicana, nas aulas muito calada, até um pouco sonolenta, bocejando frequentemente. Amiga da D. Boneca, da Guiné. Não moram no bairro.

Quando a Clara percebeu que eu ia de carro pelo menos até meio caminho pediu boleia, para ela e para a amiga. A pouco e pouco a boleia estendeu-se ao Lidl. Depois passei a levá-las a casa.

Por vezes um amigo ia lá ter com elas. Quando entravam no carro o sono passava, riam falavam alto, e o pior é que eu não percebia nada porque falavam em crioulo.

Então eu tive a primeira atitude repressiva 

- "Amigas, aqui no carro fala-se português, também me quero rir."

Foi bom, informalmente passei a perceber um pouco melhor a vida daquelas mulheres. E julgo que elas também me conheceram melhor.

Quando as aulas acabavam, com a ajuda de todas, arrumávamos a sala. Se me atrasava um pouco lá vinha a “boca”:

- "Professora, está na hora da camioneta dos pretos!"

Da Guiné havia mais quatro senhoras. De Cabo Verde cinco senhoras e um homem que depois desistiu.
E assim foi este grupo no Ano lectivo 2015/2016

Um grupo tão heterogéneo, como heterogéneas eram as motivações que o juntavam aos domingos.


“E vimos ao Domingo, porque queremos:

Joana - Saber ler;
Alice - Saber ler, saber o que está escrito em determinado sítio, saber para onde ir.
Clara - Saber ler e escrever, saber para onde ir; para ajudar no trabalho na cozinha e refeitório.
Fernanda - Saber ler e conhecer as letras; para o trabalho na limpeza.
Idalina – Para tudo, para conviver e falar com as pequenas.”

(Texto e fotografia retirados de uma brochura que fiz em jeito de avaliação do trabalho)  

Agora um pequeno extracto do texto anterior (Recomeçar), para conseguir escrever o que quero. “Desde o passado ano lectivo (abril de 2015) que comecei a fazer alfabetização de adultos, e desde essa altura que me apeteceu contar-lhes alguns aspectos dessa aventura, sim porque de uma aventura se tratou e vai continuar a tratar.
Mas, no entanto, parecia que alguma coisa me travava. Eu sei o que era e penso que vocês também vão perceber.”


Não pensem que a diversidade era só entre alunas. Entre as formadoras não era a idade, a cor da pele ou o país que nos separava. O que nos separava eram as diferentes concepções sobre como fazer alfabetização, ou como ensinar a escrever e a ler crianças e adultos.

Uma professora do 1º ciclo; uma doutorada em Sociologia, que durante toda a sua vida académica trabalhou sobre as questões culturais e linguísticas da população Cabo Verdiana; uma aluna da licenciatura em Educação de Infância, e eu, educadora reformada e com ideias muito próprias sobre estes processos.



Quatro pessoas que não se conheciam, estavam juntas ao mesmo tempo, no mesmo espaço, “improvisando” para o mesmo grupo. 

E o pior é que não havia tempo para discutir e reflectir.
Imaginem a aventura!


Quem me conhece, sabe que tenho bom feitio, mas muito impulsiva, quando as coisas não me agradam por vezes sou bruta. Um dia depois de levar livros e textos para se ler em conjunto, houve uma grande discussão sobre os chamados “Métodos”


O que não foi mau, só que não se chegava a conclusão nenhuma!


Combinámos levar “especialistas” para nos ajudar. 



No principio do Ano Escolar, no dia 31 de outubro 2015, tivemos uma reunião com:  A Professora Teresa Seabra e o meu amigo Pascal.

Vá lá que os “especialistas” se conheciam e  estiveram de acordo!



3 comentários:

  1. Olá Ana! Gostei muito de ler o que escreveste e como escreveste sobre " As Tuas Senhoras". Deve dar muita satisfação sentir a alegria delas, quando começam a ler...

    ResponderEliminar
  2. Olá Ana! Gostei muito de ler o que escreveste e como escreveste sobre "as tuas senhoras". Deve dar muita satisfação sentir a alegria delas, quando começam a ler...

    ResponderEliminar
  3. Falar de Senhoras e cultivá-las com maiúscula é o que transparece da leitura do teu texto, temperado com essas ervinhas do gostar muito daquilo que se faz, alimentado, também, no lume brando dos afectos e da partilha - palavras tão gastas que já sentimos necessidade de parar e pensar duas vezes antes de as utilizarmos...

    Espero bem que, em prol daquilo que interessa verdadeiramente, mantenhas bem viva esta chama!

    ResponderEliminar