Ainda a "Gente" se Queixa


No domingo dia 8 de Janeiro, recomeçaram as aulas depois das férias do Natal.

Pouca gente apareceu, a D. Joana esteve hospitalizada com pneumonia. Trouxe notícias da amiga Fidélia, também ainda está “malesinho” e o marido esteve quase “a patinar” …


A D. Fernanda estava contente, tinha arranjado mais um trabalho. A D. Idalina como de costume vinha feliz, tinha ido a Cabo Verde no Natal. A Aissato, sentou-se ao pé de mim, senti que queria uma maior ajuda.


Eu estava sozinha porque a Raquel tinha avisado que chegava mais tarde.

Queria fazer algumas “revisões”, mas começou tudo a dizer que não tinham feito nada…
Com a nova tabela de presenças preparei também uma listagem com os meses do ano. Estavam ordenados e percebi que os sabiam de cor. Quando pergunto "salteado" é que o caso muda de figura!

Distribuído o trabalho,sentei-me com a Aissato à direita e a Fernanda à esquerda. A Fernanda baixinho disse-me:
- A professora podia ensinar a escrever as horas de eu limpar as casas de banho. É para a chefe não zangar…

- Mas como é, explique-me lá se faz favor.

Ela lá me explicou que entrava às 6.30 e picava um cartão. Não era preciso escrever nada. Limpava as secretárias e os “papéis” e depois ia limpar as casas de banho, disse-me três tempos, a primeira começava às 6.55, depois a do meio era às 7.10 a última era às 7.25.

Vi que usava relógio e sabia ver as horas. A Aissato já estava interessada no assunto. 

Passei depois para a escrita das horas. Algumas pequenas confusões sem grande relevância,que com alguns exercícios seriam ultrapassadas, pensei eu. Lá continuei 7.10; 7.20; 7.30 …ela coitada lá ia escrevendo, mas sempre a abanar a cabeça e a dizer:
- Tem uns buracos para eu escrever o nome.

Aí a Aissato perguntou:
- Está na porta?

Como falavam ao mesmo tempo e muito depressa, custou-me a perceber, que o que ela queria era uma tabela, como as que se veem nas portas das casas de banho dos centros comerciais. Em vez de escrever em coluna fiz uma tabela e preparava-me para continuar com os exercícios. Até que ela conseguiu verbalizar o que queria.

- A professora faz um papel pequenino, com os riscos todos, e eu guardo no bolso da bata e depois copio.

- D. Fernanda, mas se um dia se demora mais a limpar as secretárias, mudam as horas todas.

- Não posso. Tem de ser sempre nas mesmas horas!
Depois confessou que já tinha perdido um emprego porque não sabia fazer aquilo.

Lá lhe fiz a matriz que depois de olhar a confirmar, dobrou cuidadosamente. 
Quando saiu ia mesmo feliz!

Quando a Raquel chegou foi apoiar um grupo. Pedi para a D. Joana ler um texto, que eu já lá ia ouvir. Leu rapidamente e dizia:

- Já li, mas hoje ninguém me liga! Coitadas as professoras não dão vazão a isto, só duas, já sei vou fazer umas palavrinhas…

- D. Joana, hoje vai ensinar a Néné a escrever umas palavras do texto que esteve a ler, disse-lhe eu.

- Mas que jeito, uma alentejana a ensinar uma …ai, de outra terra a escrever, mas eu dou muitos erros.

No entanto,muito satisfeitas lá estiveram as duas.

A manhã chegou ao fim. A Boneca pediu-me boleia. Percebi que estava desanimada.
Por fim lá começou a desabafar.

- Outro dia pedi para a minha filha me ensinar a ler uma coisa aqui da escola. Sabe o que ela me disse?
- Esquece, não vais aprender…

Quase sem interrupções foi-me contando que andava muito cansada, se calhar tinha de desistir de um trabalho, porque quase que não via as filhas. Acordava ás quatro da manhã para deixar a comida e as roupas das filhas arranjadas.
Depois ia apanhar uma camioneta para Oeiras, limpar uns escritórios.
Quando acabava ia apanhar o comboio e ficava na estação da CP de Carcavelos, onde trabalha a tempo inteiro.
Depois do trabalho, vai para o Centro de Saúde da Parede, fazer o turno da limpeza da noite. Não consegue chegar a casa antes das dez horas. Muitas vezes as miúdas já estão a dormir.
- Eu também parece que ando sempre a dormir…

Depois de ouvir isto

          Fiquei angustiada!                     
     
                                    Ainda a “Gente” se Queixa.

3 comentários:

  1. ... e a gente queixa-se porque tem razão. É essa a primeira razão da queixa acharmos que TEMOS razão... depois logo de seguida às vezes perdemos essa dita razão toda. Não quero pensar (para não me enervar) com essas vidas que me atormentaram alguns anos, com os filhos que não viam os pais, os pais que não sabiam ler, os registos que as professoras mandavam REGULARMENTE nas cadernetas. Para quê? E que também que não vinham ás reuniões das escolas ... e que as leis obrigam a terem tempo para essas coisas. A culpa é dos patrões. Dos banqueiros. Dos que não se queixam dumas coisas, para se queixarem de outras. Tenho dois edredons e aquecedores em casa ... e há os sem abrigo que para não morrerem todos os deixam dormir umas noites dentro das estações de Metro, em vez das entradas dos prédios. Se isto para mim fizesse alguma diferença, comovia-me e a seguir atirava-me do Espichel abaixo. É um sitio lindo! E queixo-me. E isto está tudo errado. E isto são pessoas como nós. E isto ainda não está como Alepo. Façamos mais um esforço.

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  2. Ó meu amigo, obrigada, eu continuo a fazer mais um esforço por elas e às vezes por mim.

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  3. Sem dúvida que há vidas tortuosas. Infelizmente sempre de pessoas com menos posses e que procuram fazer tudo certinho para manterem o seu posto de trabalho e no final da semana ou mês, levarem um parco salário para casa e assim terem um mínimo de conforto e levarem uma vida honesta...Às vezes ouço amigas com belas reformas queixarem-se e pergunto já olhaste à tua volta, já viste como há pessoas a passarem fome e muita fome encoberta? Até podes olhar em frente...e a resposta é sempre egoísta: com a vida dos outros posso eu bem!...Enquanto cada um só olhar para o seu umbigo não se vai a lado nenhum. Abraço Ana

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