Conversar é falar sobre o mundo que nos cerca.
Dialogar é falar sobre o mundo que somos - Augusto Cury
Sempre tive esta mania de guardar frases ou
fragmentos de frases que li e de que gostei. Esta mania tem um “pequeno
problema”, a maior parte das vezes esqueço-me do contexto em que a frase estava
inserida, outras vezes nem o nome do autor assento.
Vá lá que esta frase que dá nome ao texto de
hoje, pelo menos tem o nome do autor…
Isto vem
a propósito de uma preocupação nossa de na alfabetização estabelecermos
conversa com as senhoras.
Mas isto
de conversar em grupo tem muito que se lhe diga! Há uma ou duas senhoras que
falam muito, e outras a quem quase não ouvimos a voz. E o mais grave é que
muitas vezes nem damos por isso. É assim com os adultos e também com as
crianças.
Vou-lhes
contar um pequeno episódio: Quem todos os domingos nos abre a porta e as
janelas é o senhor Gregório. Mora em frente da Kutuca. Um domingo cheguei, e ao
mesmo tempo chegaram três senhoras da Guiné: Aissato, Néné Costa e Fátima.
Estava um dia de muito frio e o Gregório apareceu com um casaco “polar”, cachecol
e gorro.
Brinquei
com ele
- Ei
hoje está todo tapado, mas que gorro tão quentinho!
Por
acaso olhei para a Néné e reparei que ela repetia baixinho gorro quentinho.
Comecei
a perguntar-lhe o nome de peças de vestuário, sabia sapatos, calças... A coisa
complicou-se quando chegou à cabeça e apontei para o gorro:
- O que
é?
-
Sumbia! disse ela
-
Sumbia?
- Sim é “do
homem”. (disse Sumbia com um ar tão afirmativo que nem retorqui)
- E
isto, apontei para o cachecol.
- Pano.
- Cachecol!
É para aquecer o pescoço.
- E
isto, apalpei o casaco do Gregório…
- Camisa.
- Néné,
aqui dizemos casaco.
Ela já
zangada repetiu
- CAMISA.
O ar
zangado dela fez-nos rir, o que ainda a enfureceu mais.
- CAMISA,
na minha terra “diz CAMISA, não há frio, a gente não tem…"
Este
episódio fez-me ficar mais atenta. A pouco e pouco fui-me apercebendo que a
compreensão oral da maior parte delas é muito reduzida. A maior parte trabalha
em empresas de limpeza, anda de local para local, “a franjar” como dizem.
Poucas pessoas devem falar com elas. Em casa e, com as amigas falam crioulo.
Imagino
que as que falam melhor, são as que trabalham em locais onde há uma maior interacção, como a Clara que trabalha no refeitório de uma empresa, ou a Boneca
que trabalha na estação dos comboios da CP.
Incentivar
a oralidade foi uma das nossas estratégias. Conversar e ao mesmo tempo ir escrevendo
no quadro as conversas, para perceberem que o oral e o escrito estão
relacionados.
Mas ao mesmo tempo que se escrevia no quadro, a
preocupação delas era copiar para o caderno, o que não deixa de ser
interessante.
Vou-lhes contar agora outra pequena história: Uma vez
que se tinha falado de compras e supermercados, resolvi fazer um cartaz com os logótipos dos supermercados da zona. Para minha surpresa quase nenhuma os
reconheceu. A minha surpresa foi maior, porque sei por experiência, que as
crianças, mesmo muito pequenas são motivadas pela publicidade e a conseguem
descodificar.
Eu já lhes tinha dito que esta experiência de
alfabetização, foi e é uma grande aventura!
O domínio da língua portuguesa é reduzido;
A percepção do código escrito é inexistente;
A escrita existente no “meio envolvente” é ignorada;
A isto acrescentamos a pouca visão que algumas
apresentam, a falta de óculos ou óculos desadequados...
E complicação das complicações:
- Tiveram filhos e netos que andaram na escola, que
aprenderam o AEIOU, que tiveram manuais, que fizeram cópias.
Para elas a escola é isso!
Começar o dia por colocar a data no caderno, se possível
copiar as letras do alfabeto, depois copiar “as falas” escritas no quadro.
Como diz a D. Idalina a rir-se: - “É compricado, para nóis é muito compricado”.
Por vezes há ajudantes, e que bela ajuda nos dão. São
muito mais didácticas que nós!
Muitas das estratégias que tentamos utilizar são
inspiradas na nossa prática com as crianças, e com algumas reminiscências de
Paulo Freire, já sem a carga politica a ele associada.
Li algures que Paulo
Freire era aberto a debates e reuniões e uma das suas principais virtudes era
ouvir críticas e, principalmente, auto-criticar-se permanentemente. Com isso
modificava, revia e alterava conceitos. Como ele mesmo dizia: “cada vez mais incerto de suas certezas”.
É pá que orgulho,
estamos quase parecidas com o Paulo Freire!
Façam favor de nos criticar…
Nota: Fui procurar a palavra Sumbia ao Google, procurei em Amílcar Cabral e lá apareceram umas pequenas referências:
"A sumbia é o gorro que muitos homens africanos
usam, julgo que sobretudo na Guiné Bissau, Gâmbia e Senegal. (...) Não há nada escrito sobre estes gorros, apesar de tantas pessoas os conhecerem por os
associarem imediatamente à figura de Amílcar Cabral" (...)
Pois as línguas têm destas coisas, enquanto não falarmos todos a mesma, o que espero nunca venha a acontecer, apesar de muitos o desejarem ... Também me ocorreu enfrentar textos interessantes de um a criança romena, que escrevia uma história de fantomas. Eu disse-lhe que em português se dizia fantasma, e ele escreveu um longo texto com 14 (se calhar só 11) vezes a palavra "fantajma", tal como ouviu, e assim dizemos. Também me descrevia os fins de semana em que brincava em casa com o irmão no "balcão" ... e aqui tive de me socorrer do meu stock de neurónios laureados para perceber que ele traduzira "balcon" do francês, que aqui se diz varanda... Ele era inteligente a nossa língua é que não estava de acordo com a inteligência dele. É assim a vida das línguas e a das pessoas, desgraça é não darmos por isso, ou pior passar ao lado como se nada fosse. Ah ... na Roménia eles começam a aprender francês no 3º ano (?) de escolaridade!
ResponderEliminarOlá Ana! Que bonita e grande aventura! Como sempre gostei e gosto de ler histórias de vida, encontro na tua escrita um desenrolar de diferentes histórias de mulheres, que em comum têm o objectivo de aprender a ler e escrever. E acho interessante a abordagem que fazes e as estratégias que tão bem sabes utilizar. Até breve!
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