Nos Anos Cinquenta





Como é preciso começar por algum lado, vou fazer um pequeno exercício, e regressar à minha infância, ajudada pelas memórias filtradas ou enriquecidas pelo tempo.

Só agora tomei consciência de que os anos cinquenta já foram há muito tempo. Tanto tempo, que algumas das coisas de que aqui vou  falar desapareceram completamente.

As casas eram grandes, pelo menos as que eu conhecia. Tão grandes que permitiam guardar um mundo infindável de objectos, que nunca se deitavam fora.

Não havia supermercados, nem sequer mini-mercados! As compras eram feitas na praça, ou em mercearias que tinham nome de gente, a do Carlos, a do Silva… Havia também pequenos espaços conhecidos por “lugares”, vendiam quase só fruta e hortaliças, e também eram conhecidos pelos nomes dos proprietários. Era o lugar da menina Joana do Libertário, o lugar da menina Prazeres...

Por qualquer fenómeno desconhecido, as proprietárias, que eram quase sempre mulheres, eram sempre chamadas de meninas, mesmo que fossem casadas e já velhas.

Depois havia lojas bem diferenciadas, segundo os artigos que vendiam. Retrosarias, capelistas, sapatarias, chapelarias e, até luvarias!

Não havia televisão, e quando apareceu poucas pessoas a tinham em casa. Ia-se ver aos cafés!

Nesse mundo já distante não havia máquinas de lavar roupa ou loiça, e os detergentes eram muito pouco usados. O mais conhecido, era o Tide que patrocinava uma rádio novela a que toda a gente chamava “A coxinha do Tide” e, passava à hora do almoço, juntando no mesmo choro patroas e criadas (as empregadas chamavam-se criadas).

Um mundo tão distante, em que havia papéis bem diferenciados para os homens e para as mulheres. (descobri isso muito cedo, pensando sobre as pessoas que conhecia, e digo-lhes, que na minha pequena opinião, considerava que o papel dos homens era muito mais interessante).

Se lhes falo destas coisas já inexistentes, é porque elas vão ajudar a entender melhor o contexto onde eu me inseria.

Nasci no Rossio ao Sul do Tejo, uma povoação perto de Abrantes. Fui lá nascer, tal como o meu irmão mais velho, porque era lá que viviam os meus avós maternos.

Era uma casa grande, ligada a um estabelecimento comercial, que percebo hoje que era uma espécie de "Cash and Carry" que abastecia as mercearias das terras em redor.
Nasci de oito meses, magrinha e engelhada. Segundo ouvia dizer, chegaram a ter medo que eu não "vingasse", mas tudo se resolveu em bem e, cá estou eu forte e escorreita.

Não tenho recordações dessa casa, porque algum tempo depois, os meus avós a venderam e vieram morar para a Parede, na linha de Cascais. Vida nova casa nova! Trouxeram no entanto algumas recordações desse tempo.

Parece que o meu avô era mais dado ao divertimento do que ao trabalho, gostava no entanto de ter tudo organizado e, entre algumas coisas de que não se desfizeram, ficaram uns álbuns, onde estavam colados rótulos de muitos produtos, chocolates, bolachas, com certeza recordações da mercearia, e que eu me entretinha a folhear. Mas já estou a misturar tudo, mais tarde voltaremos aos álbuns.

O meu pai, engenheiro silvicultor, tinha optado pelo trabalho de campo. Durante os 5 primeiros anos da minha existência não tivemos casa. Ele estava integrado numa equipa que fazia o levantamento das espécies florestais em Portugal. A minha mãe acompanhava-o, e eu e o meu irmão também, sempre que havia condições de alojamento, o que por vezes não acontecia, porque o Portugal dos anos 50, não era o que é hoje.

Quando não os podíamos acompanhar, eu e o meu irmão ficávamos em casa dos meus avós. Como as distâncias eram muito difíceis de vencer, embora houvesse telefone, a maneira mais fácil de ultrapassar as saudades era a escrita. E muitos postais se escreviam de cá para lá, e de lá para cá.

Quando chegou a altura do meu irmão ir para a escola, verificaram que essa vida de ciganos, não se poderia manter por muito tempo. Foi preciso o meu pai arranjar emprego em Lisboa e casa para morar.






Viemos então também para a Parede,para o 1º andar de uma casa grande em frente à praia. (teria eu uns cinco anos de idade)



Ainda não falei dos meus avós paternos que viviam em Torres Novas. Também numa casa grande, que também tinha um armazém de mercearias ao lado. E tinha um quintal, e esse quintal tinha umas escadas e as escadas iam dar ao rio.

O que eu gostava deles, o que eu gostava daquela casa. A alegria que sentia quando lá íamos de visita e eu via a grande tabuleta à porta do armazém.

 - Papá, o que diz ali? Perguntava eu
 - Domingos Francisco de Oliveira e Filho

       ARMAZÉM DE MERCEARIAS


Ver aquela tabuleta, ouvir o meu pai ler, era para mim a antecipação de uma coisa muito boa que ia acontecer.

Não sei precisar quantos anos teria, mas lembro-me de um dia lhe ter perguntado porque é que não estava lá escrito filhos (eu sabia que o meu avô tinha dois filhos!)
- O armazém é do tio Rui. Eu estudei, não preciso disto, respondeu-me ele. Não entendi, mas também não perguntei mais nada.

Como já disse, as casas eram grandes, e para além das coisas, as casas tinham cheiros muito fortes e marcantes.

Na Parede, tanto na minha casa como na dos meus avós, os cheiros ajudavam a perceber as rotinas diárias. A minha mãe, tal como a mãe dela eram domésticas e cuidavam daqueles santuários.

Lembram-se de eu ter dito que nos anos 50 quase não havia detergentes nem máquinas de lavar roupa?

Pois bem, ao Domingo à noite as casas começavam a cheirar a sabão. Um cheiro adocicado que se entranhava no nariz. Era a altura de fazer a sabonária, para pôr a roupa de molho em grandes alguidares. Uma barra de sabão era cortada com uma faca própria, em fatias muito fininhas. Ia num tacho, também próprio, a derreter ao lume. Depois punha-se a roupa bem aberta num alguidar com água quente a que se juntava o sabão derretido.

Na segunda-feira, era o dia de lavar a roupa, um cerimonial que ocupava a manhã toda. Até o estender da roupa tinha preceito!

Muitas vezes, quando por alguma razão ela não secava, não ficava estendida no jardim. Passava do jardim para a janela. Muitas vezes o meu pai quando chegava, ao ver aquele estendal, dizia para a minha mãe:

“Ó sua descaradona,
Tire a roupa da janela
Porque essa roupa sem dona
Lembra-me a dona sem ela”

E quando dizia isso, tinha um brilhozinho nos olhos, que me intrigava e imaginava ser assunto interessante para ser mais aprofundado… Mas como estamos a falar sobre a escrita, vamos deixar de lado as minhas concepções sobre o sexo e voltar à rotina caseira.

Não me lembro o que se fazia na terça-feira, à quarta-feira passava-se a ferro, mas a quinta-feira era o melhor dia da semana, era o dia da libertação das “escravas do lar”. Muito bem vestidas e perfumadas a minha mãe e a minha avó iam a Lisboa, à Baixa, ou então lanchar com as amigas.

Gostava desse dia!


De vez em quando também me levavam, mas normalmente ficava em casa, com a criada.

Sexta-feira, dia das limpezas. A casa cheirava bem, a cera! Ao Sábado eram as compras e, ao Domingo ia-se à missa (só as mulheres). O meu pai que era dado a versejar, dizia por vezes:

“Duas mães com duas filhas,
Vão à missa com três mantilhas”

- Papá porque não vens à missa? Perguntava eu.
- Não gosto de missas, só fui à missa no meu casamento e já me chegou!

Mas eu até gostava de ir à igreja. E desde muito cedo, um pequeno missal de capa branca escrito em latim, acompanhava-me. Ser em latim ou em português, também não era importante, porque eu ainda não lia, gostava no entanto de o folhear, e de ver os “santinhos” que lá estavam guardados. Durante o cerimonial, fazia de conta que acompanhava a leitura.

E era assim, semana após semana, nas duas casas da Parede, que cheiravam igual nos mesmos dias, com aquelas duas almas, a quererem que desde pequenina, eu “naturalmente” fosse aprendendo a difícil arte de ser dona de casa.

Bem tentavam, pedindo ajuda para cortar o sabão, para limpar a loiça ou o pó. Qual quê, eu não entendia porque tinha de ser assim como elas queriam! Porque é que o sabão tinha de se cortar sempre com aquela faca e não com outra. Porque é que havia tantos panos para limpar a loiça, até tinham escrito as diferentes atribuições - Alumínio; talheres; copos… (o símbolo muito bem bordado ajudava a identificar). E porque é que tinha de se limpar o pó, se não havia pó… E, como não entendia, quando solicitada, não correspondia devidamente aos anseios. Deve ter sido dessas ocasiões que ganhei fama de terrível e de as arreliar.

Era nas ocasiões em que eu não correspondia ao que era esperado, que invariavelmente eram proferidas algumas das frases que mais me irritavam:

Ana Maria, (só me tratavam por Ana Maria quando eu me portava mal) põe a mão na tua consciência!

Só que mais uma vez eu não as podia satisfazer, pois nunca descobri, onde se situava a tal consciência…

(Tinha uma leve intuição que se situava entre as pernas, porque me estavam sempre a dizer, para me sentar direita, não mostrar as cuecas)
 Breve interlúdio ilustrado - Em busca da consciência…

"Ó p'ra mim a por a mão na consciência



"Aqui devo estar a marimbar-me para a consciência"



Outra das frases usuais, daquelas que mais me irritavam, era:
- Ana Maria, põe os olhos na Bélinha!
(A Bélinha era uma prima afastada, em que eu nunca poderia pôr os olhos, pois nunca a via, enfim coisas de adultos.)

Tinha também, uma capacidade intrínseca de me sujar, e de não ter a compostura adequada a uma menina. A frase utilizada nessas ocasiões era:
- Ai Meu Deus, o Tozé, (meu irmão) é que parece a menina da casa!

Para não ser constantemente solicitada para executar as pequenas tarefas domésticas, destinadas a fazer de mim uma futura boa dona de casa, fui arranjando estratégias para conseguir sobreviver.

 Uma dessas estratégias era executar mal todas essas tarefas, o que fazia com que houvesse um abrandamento nas solicitações.

Procurava encontrar alternativas fora de casa, estava sempre pronta para fazer recados (nisso sim eu era boa!), para ir brincar com amigos, ir ao parque ou à praia…ou então, quando de todo em todo isso não era possível, refugiava-me na "leitura", embora ainda não soubesse ler, ou soubesse ler mal.








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