No ano lectivo de 1970 /1971, terminada a parte
curricular do Curso de Educadoras de Infância na Escola Maria Ulrich, fui fazer
o estágio final do 3º Ano no Centro Social do Casal Ventoso.
Embora na altura o bairro ainda não estivesse associado à
problemática da droga, a pobreza e a exclusão social a ela associada, levavam
já a considerar o bairro do Casal
Ventoso como problemático. A primeira aproximação ao local de estágio foi desastrosa.
Imaginem uma jovem de dezanove anos, “menina da linha” que nunca tinha sido
confrontada com outras realidades sociais, subir de autocarro a rua Maria Pia, descer na Meia Laranja,
vestida lembro-me, com uma peça inteira bem agarrada ao corpo, um género de "macacão", mas que em vez de ter calças, tinha calções - "hot pants", como se chamava na altura a essa peça de vestuário.
A primeira sensação que
tive foi a de que nunca tinha visto tantos homens desocupados na rua, todos
entusiasmados a olhar para mim. Percebi imediatamente que a minha indumentária
não estava adequada ao contexto. Já não fiz mais nenhuma exploração no bairro.
Dei meia volta apanhei o autocarro e vim para casa.
No dia seguinte, já mais composta, apresentei-me ao
serviço. A descida para o bairro era de calçada polida e escorregadia. O lixo era muito, cães, gatos, galinhas e moscas andavam
na rua, a água e esgotos corriam a céu aberto. Muitas mulheres em camisa de
dormir por baixo de batas ou aventais conversavam encostadas às portas e
janelas, esperando por vez para encher as bilhas de água, muitas crianças
sujas e desgrenhadas corriam na rua.
O Jardim de Infância também não correspondia em nada às
minhas expectativas.
Era uma casa, igual a todas as outras do bairro. Velha e
degradada. Uma porta e duas janelas era o que se via da rua. Lá dentro uma
escada íngreme fazia a distribuição para vários pisos inferiores. No piso da entrada, um patamar mínimo dava acesso a duas salas.
Ao fundo das salas, improvisadas em
marquises, sem qualquer privacidade, ficavam as casas de banho das crianças.
Descendo um lanço de escadas outra sala e um dormitório. Descendo outro lance
ficavam os dois refeitórios, tão pequenos e apertados que as mesas estavam
encostadas à parede, e as crianças sentavam-se em bancos corridos (viradas para a parede).
Descendo outras escadas íamos para o pátio, uma varanda minúscula e cimentada com uma rede à volta, parecia um galinheiro!
A humidade escorria pelas paredes, o cheiro era de mofo,
misturado com cobertores mal lavados e urina ressequida. Tudo aquilo me
agrediu.
O corpo docente era composto por uma Educadora e duas estagiárias (eu e uma colega, a Antonieta). Uma senhora do bairro era encarregue de várias tarefas, mas nenhuma tinha a ver com a parte pedagógica! Punha mesas, ia buscar as refeições ao Centro Social onde eram confeccionadas, descia depois as escadas íngremes, carregada com grandes panelas, empratava, lavava a loiça, etc.
Lembro-me que também era especialista em desentupir sanitas.
Investimos imenso a tentar embelezar um pouco as paredes,
transferindo para grandes papéis de cenário personagens ampliadas de histórias
infantis. Com base nas minhas concepções estéticas da altura, considerei o
produto final bastante satisfatório.
Pouco depois entravam as crianças e tudo aquilo passou.
Tínhamos aprendido a trabalhar por Centros de Interesse, que supostamente eram
unidades de ensino que vinham de encontro às necessidades e interesses das
crianças.
Mas depois de um desastroso Centro de Interesse sobre
os transportes, que para ser mais real,
e motivar mais as crianças foi dado com o auxílio de carros de colecção que
pertenciam ao meu irmão, e dos comboios eléctricos do meu pai.
(foram todos
“fanados” sem que eu desse por isso).
Fez-se luz na minha cabeça. Percebi que grande parte daqueles
meninos nunca tinha saído do bairro, e que muitos o mais longe que conheciam
era a rua Maria Pia...
Entrei em conflito com as directrizes da escola,
considerando que nada do que eu tinha para lhes
ensinar, os interessava muito. "Decretei" que o que tinha a fazer era sair
com as crianças. E que belos passeios dávamos, sempre a pé, da Maria Pia aos
Prazeres, dos Prazeres a Campo de Ourique e ao Jardim da Estrela… e víamos as
lojas, os transportes, os jardins.
E durante os passeios, e depois já na escola tínhamos
grandes conversas sobre todos esses assuntos. Acho que intuitivamente tinha
descoberto como a linguagem ajuda a estruturar o pensamento.
Faltava-me no
entanto descobrir tantas coisas:
- Que a escrita podia fazer permanecer o dito
e o vivido.
- Que os meninos das classes desfavorecidas
também tinham conhecimentos;
- Que o bairro e as pessoas do bairro eram
importantes;
E alguns anos se passaram sem que eu fosse descobrindo
isso!
Terminado o estágio e entregue um trabalho final, uma
espécie de tese que ainda deu que fazer, um pouco por culpa do meu pai que vendo
a minha dificuldade em encontrar um tema para a investigação me lançou o repto:
- Queres lixar essas gajas? (ele
usava normalmente uma linguagem bastante forte) Escreve sobre a criança e a
Conservação da Natureza.
Isto porque ele andava nessa altura muito entusiasmado
com a ecologia, ciência que estava a dar os primeiros passos em Portugal.
Mas quem se ia lixando era eu, porque na escola não havia
ninguém para me orientar e me vi sozinha a dar conta do recado… enfim, depois
até nem ficou muito mal, mas como estava a dizer, nos finais de Junho de 1971,
com a média final de 13 valores eis-me EDUCADORA DE INFÂNCIA.
Gostei muito de ler esta descrição de um primeiro embate com a vida profissional. Fez-me lembrar os meus começos numa sala que pertencia à igreja da aldeia e onde havia carteiras par os meninos, um quadro e sacas de leite em pó da Caritas. Quando lembramos estas coisas, temos uma consciência maior do tempo que passou. E é fantástico como, estranhas ou duras ou constrangedoras, essas experiiências foram tão importantes na construção da nossa profissionalidade. Lembro a sala da Ana na escola de Alcântara, a organização, o afeto, a vida que se sentia, mal se entrava e digo agora: olha, começou tudo no Casal Ventoso.... Obrigada pela partilha
ResponderEliminarComo tu dizes "estranhas ou duras ou constrangedoras,essas experiências foram importantes na construção a nossa profissionalidade.
EliminarMais uma vez a cópia de um e- mail mandado por uma amiga, desde a escola primária.( Helena A. Martins)
ResponderEliminar"(...) Tenho sido uma leitora assídua das tuas memórias que acho deliciosas e até já me apeteceu "meter a colher", mas ando uma grande preguiçosa.
Li com particular interesse a tua ultima crónica sobre o Casal Ventoso, por corresponder a uma época em que cada uma de nós seguiu o seu caminho e teve vivências bastante diferentes.
Em 1971, enquanto tu convivias "in loco" com algumas das realidades nacionais e iniciavas a tua vida profissional, eu encontrava-me a meio de um curso bipolar, que tanto podia formar economistas com a "cassete"
Salazarista como Cunhalista: a matemática convivia com a política e servia-a de acordo com o modelo pretendido. Tempos em que a discussão académica potenciada pela guerra colonial se sobrepôs a outras realidades nacionais.
Enfim! Cá estamos, mais velhas, calejadas e (falo por mim) desiludidas.