Gostava muito quando o meu avô, o que
morava na Parede, um grande diabético, me convidava, e ao meu irmão, para irmos
ao escritório dele. Porta fechada à chave, já sabíamos que era dia de festa.
O escritório tinha dois sofás de cabedal,
uma secretária, em cima da secretária um pisa papéis de vidro pesado, com cores
e desenhos lá dentro, uma caixa com muitas divisões onde estavam selos do
correio, uma faca de cortar papel com uma coroa no cabo.
Havia também um
esconderijo por baixo do tampo, onde estavam uns calendários com meninas pouco
vestidas. Entre os sofás estava a mesa do telefone.
Um armário com três corpos
ocupava quase uma parede. Num dos corpos estavam arrumados os livros grossos,
só com letras (descobri mais tarde que nunca tinham sido lidos, a grande
maioria tinha as páginas ainda fechadas).
O corpo central era o bar. Com muitas
garrafas. O outro corpo era o dos álbuns e dos livros mais engraçados (mas
desses falaremos mais tarde). E havia um cofre, enorme para a minha pouca
altura. Verde escuro com uma cercadura dourada. A meio existia uma portinha
metálica. Para abrir essa portinha carregava-se numa saliência, e a porta
abria-se com um pequeno estalido, mostrando uma fechadura onde se punha a
chave.
Em cima, quatro manípulos cheios de letras que se rodavam. Cada um tinha
de ficar com uma letra bem em cima de um risco :
A – M – O – R
era a palavra chave. Só depois se conseguia abrir o cofre.
Dentro do cofre uma máquina que tinha
escrito “ CHOCOLATES REGINA”. Com um lápis furava-se uns círculos e zás! Caía
uma bola colorida que se via num pequeno vidro. Depois, íamos ver no catálogo o
chocolate que nos tinha saído. O último furo dava direito a uma caixa de
bombons, que nunca era para nós (não sei por quê, sempre desconfiei que a caixa
era oferecida à senhora da bilheteira do cinema "Royal Cine" da Parede.)
Para que a festa fosse maior, os chocolates
eram acompanhados com um cálice de licor de cacau, de anis Domus ou mesmo de
ponche.
Depois os copos sujos eram guardados
no cofre para a minha avó não dar por nada.
O meu outro avô, o de Torres Novas,
também tinha um escritório. Bastante mais austero! Penso que não tinha
esconderijo nenhum para guardar calendários com meninas pouco vestidas! Nem
sequer tinha um bar, nem máquinas de chocolates Regina, nem álbuns com imagens
para eu poder ler. O único livro com mais figuras chamava-se: “A guerra
ilustrada” (passava horas a folheá-lo). Mas também havia lá um cofre, mesmo
igual ao outro! Um dia perguntei-lhe:
- O cofre também se abre com AMOR?
Penso que ao princípio não percebeu
muito bem o que eu queria, mas depois lá me explicou:
- As letras que eu uso são o R – O – S – A, soletrou ele,
são as letras do nome da minha mãe. Este cofre era do teu bisavô e a Rosa era a
mulher dele.
A avó também tinha um cofre, mas
portátil, uma espécie de caixa com uma pega em cima. Tinha também as tais
rodinhas com letras, só que só tinha três. Era lá que ela guardava as jóias. No
entanto, bastante mais pragmática usava as iniciais do nome dela para o abrir -
L – N – D, quando questionada respondeu que havia poucas palavras só com três
letras, terminando a conversa como de costume com “ esta rapariga tem cada
lembrança mais parva, não sei onde ela vai buscar estas coisas…”
Depois, acho que aprendi o resto das letras, e a dar nome às letras, olhando um quadro bordado a ponto de cruz pela minha avó Cesária, em 1891, data em que terá terminado a sua escolaridade. Tinha uma particularidade, faltava-lhe o “J”, isso era referido várias vezes na cantilena que com ela fazia.
E eu, pouco dada a dotes manuais, ficava horas a olhar
imaginando uma menina de outros tempos, a querer despachar aquela tarefa
difícil. Para descobrir o que faltava eu repetia toda a lengalenga novamente A,B,C…..
Os escritórios escondiam verdadeiros tesouros materiais e emocionais....
ResponderEliminarÉ mesmo verdade!
ResponderEliminarContinuam as dificuldades em introduzir comentários. Enquanto não conseguir resolver o problema, o que implica pedir ajuda ao meu amigo Fernando, vou fazendo o que me pedem, copio e colo aqui os e-mails. Este é da Manuela Castro Neves:
ResponderEliminar"Ana
Fiz um comentário a quente após a leitura do teu ´blogue. O comentário desapareceu. Agora, a frio, o que em mim, significa menos emotivamente e pior escrita, vou tentar reproduzir o que lá dizia:
« o meu comentário é relativo aos teus 3 últimos textos, pois, não sei como, baralhei-me e embora julgasse o contrário, não tinha lido os outros 2.
Gostei imenso. É uma escrita que flui, tem graça e q.b. de olhar terno sobre o passado, sem aparente nostalgia . Os documentos são lindos, mas é mais lindo ainda o modo como nos levas a olhá-los. Porque, assim iluminados, passam a ser muito mais do que eles próprios. Dá para ver que viveste a tua infância num contexto de grande carinho e proteção, mas sem asfixia. Com o espaço suficiente para poderes levar a cabo as tuas aventuras, expressar as tuas interrogações e espantos. E conhecendo o teu trabalho como educadora, percebe-se que ele lá tem grandes raízes.
Dou por mim a esperar o próximo capítulo e isso é o melhor elogio que posso fazer à tua obra»
manuela
Bom dia Eduardo
ResponderEliminarComo sou um nabo nesta coisa de internet (e em muitas outras coisas), nãoconsigo saber como se inscreve um comentário num blog. Assim, se fazes favor, passa à Ana o que abaixo se lê.
Obrigado, abraço,
Manel
Olá Ana
Que bom que é ter amigos que escrevem tão bem o que eu gosto (preciso) de ler, e o que eu espero que outros leiam, porque precisam (mesmo que não gostem).
Beijinhos,
Manel
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Obrigada, amigos.
EliminarMais um a partir de e-mail:Cara Ana,
ResponderEliminarHá dias, ao ler pela primeira vez o teu bloco (como tenho uma certa aversão a modernismos informáticos, deixa que use bloco e não blogue ou lá o que é isso), escrevi qualquer coisa como: Já te disseram que escreves bem? Gostei. Prosa solta e fluida. Parabéns!
Não me lembro se foi mesmo só isto, mas não deve ter sido muito mais pois normalmente sou telegráfico.
Depois tentei enviar, mas o computador veio com uma conversa do tipo: Qual é o seu perfil?
Voltei-me de lado e carreguei (também não gosto do "clicar") em enviar.
Em vão.
Voltei-me para o outro lado. A mesma coisa.
Desisti!
Vamos lá a ver se com a ajuda do senhor que preenche o IRS contigo, consigo por esta via.
Um beijo do,
Zé Curado
Uma coisa que, se calhar, ninguém se lembrava (nem lembra) de guardar nos cofres são os afectos. E eis que alguém nos desvenda, com segredo desvendado e tudo, o que por lá se escondia...
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