Na Calçada da Tapada

Como já referi, em relação à minha ida para a escola da Calçada da Tapada, as expectativas de alguns elementos do corpo docente eram muito grandes, influenciados pelo que a Rosinda lhes tinha dito, esperavam que fosse feito um trabalho de articulação entre os dois níveis de ensino, o que não se tinha verificado nos anos anteriores.

Mas uma coisa tinha sido o trabalho na Voz do Operário da Ajuda, uma escola muito pequena, e outra coisa era o trabalho que me esperava, numa escola pública de grande dimensão...

Em Setembro de 1989 lá me apresentei ao serviço. Eu e a colega Custódia Guerreiro.

Muito bem recebidas, gostámos do ambiente daqueles primeiros dias, ainda sem crianças, íamos tentando perceber como as coisas iriam funcionar, organizar as salas, ver as crianças inscritas e a sua divisão pelos grupos, enfim os aspectos normais de um início de ano.

Mas quando as crianças entraram, confesso que tivemos um grande choque. Nenhuma de nós tinha trabalhado num sítio com tantas crianças. Nesse ano funcionavam 18 salas do 1º ciclo.

Também nos parecia que havia crianças muito crescidas, o que se verificava, pois nesse ano ainda funcionavam mais quatro classes de ensino especial, com alunos com graves problemas de aprendizagem.

A população escolar era muito homogénea, as crianças na sua maioria residiam nas zonas mais desfavorecidas da freguesia: o Pátio do Cabrinha, a Vila Teixeira, a rua da Cruz...

Era na altura um quadro de miséria extrema.

Tudo isto aliado ao dinamismo de uma parte do corpo docente, que ultrapassando barreiras legais, tinha implementado um esboço de "Tempos Livres" e um incipiente serviço de refeições.

Para quem como nós, não estava habituada aquele desassossego, foi duro!

Lembro-me até de um dia termos chorado as duas, pensando que não íamos dar conta do recado.

Naquele tempo, falar de gestão escolar ainda não estava na moda, mas apesar de haver aspectos bastante discutíveis, aquilo funcionava! Como em todas as instituições, havia pessoas mais empenhadas e outras que se limitavam a cumprir as suas tarefas. O grupo das mais empenhadas, aquilo que hoje se chamaria o “núcleo duro”, era muito heterogéneo, constituindo dois subgrupos:
- O que se preocupava mais com as questões sociais
- O que se preocupava mais com as questões pedagógicas.

No entanto, havia uma lógica subjacente a isto tudo:
- Aproveitar o que o sistema podia dar para melhorar o funcionamento da escola, daí os dois subgrupos funcionarem em articulação;
- Não perder muito tempo a pensar antes das coisas acontecerem – quando estivessem a funcionar depois se melhoravam.

A Directora da escola, Júlia Amália, era uma gestora nata. Apesar de a lei lhe permitir estar dispensada das funções docentes, nunca deixou de ter a sua turma. O que fazia era delegar funções, inventava cargos, para dar responsabilidades às pessoas, depois esperava que tudo funcionasse. Aparentemente sem grande envolvimento, sabia tudo o que se passava.

Percebemos rapidamente que tínhamos de entrar naquela lógica, porque sozinhas não tínhamos capacidade de oferecer os tais serviços de refeições e tempos livres, e sem oferecer esses serviços, não haveria crianças no Jardim de Infância!

Aliás havia poucas crianças no Jardim de Infância. Penso que as pessoas tinham receio de ver crianças pequenas, misturadas com aqueles matulões.  

E foi assim que dois níveis de ensino, e na altura duas instituições distintas - Jardim de Infância da Calçada da Tapada e Escola do Ensino Básico nº 157, apesar de ainda não estarem "oficialmente juntos" como actualmente é preconizado, passaram a funcionar em conjunto. Tendo como matriz um Projecto Educativo comum (ainda incipiente), partilhámos espaços, verbas, preocupações, sucessos e insucessos, geridos, planificados e avaliados no mesmo Conselho Escolar.

Pode parecer que foi tudo muito fácil, mas não é verdade. Houve anos bons, outros francamente difíceis. Como a escola não está desligada da sociedade, sofremos na pele as alterações políticas, sociais e pedagógicas que foram acontecendo ao longo de mais de uma década. Mas como é assunto moroso e complicado de abordar em poucas palavras, vamos voltar a centrar-nos nas coisas com escrita!

Mas antes só uma pequena nota sobre a escola da Calçada da Tapada.

O edifício principal da Escola é um edifício bastante antigo, da 1ª República, projectado pelo arquitecto Raul Lino, supõe-se que a inauguração aconteceu em 1918. Não é tanto pelo exterior, de certa maneira austero, mas o seu interior é uma maravilha! Todas as salas são decoradas com frescos, diferentes de sala para sala. Os azulejos do refeitório são também muito bonitos.
No corredor do rés-do-chão, os frescos, datados de 1918 são de António Soares, e representam diferentes profissões, de carácter eminentemente industrial.

É de facto um edifício magnífico, que ao longo do tempo foi sofrendo vários “arranjos”, custeados pela Câmara Municipal de Lisboa. No entanto, a pouca atenção dada a essas obras, fez com que algumas partes dos frescos tenham desaparecido. (temo que o que resta venha a desaparecer a curto prazo).

Esta pouca atenção dada à manutenção dos edifícios escolares e aos seus espaços envolventes sempre me fez sofrer, não consigo deixar de pensar que nas escolas, de todos os níveis de ensino, se anda sempre a inventar “Projectos de educação cívica, ambiental e patrimonial”, em que ano após ano, plantamos árvores que morrem sistematicamente, e queremos que as crianças aprendam a preservar o que as rodeia, quando tudo à sua volta apresenta um quadro de degradação incrível.

Não se imagina como eram as casas de banho daquela escola.

Já tinha estado em escolas bonitas e muito degradadas, mas neste caso, naquele edifício para mim maravilhoso, parece que tudo me afrontava e magoava ainda mais.

Um amigo arquitecto, Pedro Brandão, tinha na altura uma crónica semanal no Jornal "Público", e embora sabendo que a obra de Raul Lino não era da sua especial predilecção, pedi-lhe que escrevesse sobre a escola, na esperança que tivesse mais impacto que os sucessivos relatórios enviados para a CML.

Infelizmente não deu grandes resultados.

Havia ainda outro facto que me fazia, se isso é possível, ter mais respeito em relação aquela escola. É que ali, tinham funcionado as duas primeiras salas "oficiais" de Jardim de Infância.

Irene Lisboa e a sua ligação à Escola da Calçada da Tapada

Em 1920, foram criadas em Portugal, as primeiras classes infantis, anexas às aulas do Ensino Primário Geral.

Em virtude de não haver Professoras especializadas neste nível de ensino, foram convidadas a preparar-se para as orientar algumas professoras do Ensino Primário. Entre essas professoras estavam Irene Lisboa e Ilda Moreira.

Ilda Moreira, relata-nos toda a riqueza desta experiência nos seguintes termos:

"Realmente as férias foram de trabalho contínuo: Leitura dos livros da Dr.ª Montessori e do "Método Decroly" e fazer o esquema de um programazinho, mais especificado que o da reforma, com o que nos pareceu necessário para um primeiro ensino: exercícios de linguagem (rimas, adivinhas, lengalengas e histórias) canto, desenho, trabalhos manuais, iniciação de leitura escrita e cálculo, jogos infantis e rítmica livre.

Escolhemos mesmo, dentro da tradição portuguesa, os cantos, histórias e jogos mais convenientes. E dentro do tradicional, porque toda a educação tem a sua adaptação natural naquilo que se aprendeu no berço.

No começo do Ano Lectivo (Outubro de 1920), das professoras escolhidas, só nós duas nos propusemos, com a apresentação do trabalho, para o ensaio das secções infantis."

Uma das escolas escolhidas para nela funcionarem duas dessas classes, foi a Escola da Calçada da Tapada, por ser nova vasta e bonita.

Também Irene Lisboa é recordada por Ricardo Rosa y Alberty:

" Na minha missão de inspector, muitas vezes visitei aquela linda escola da Calçada da Tapada, feliz criação do belo espírito de João de Barros, antigo Director Geral do Ensino Primário que tanto empenho pôs na sua construção, escola onde funcionava a classe infantil regida por Irene Lisboa.

As classes do ensino primário, pela competência e zelo que reconhecia nos respectivos professores, não me prendiam muito, mas nas classes infantis, aí me demorava, encantado com o seu funcionamento.

É que Irene Lisboa não fazia da sua classe, como infelizmente em algumas escolas infantis se nota, uma escola primária de via reduzida, com a preocupação de ensinar prematuramente, os rudimentos da leitura e da escrita. (...) "

As Classes infantis, funcionaram até ao fim de Julho de 1938, data em que foram extintas, como todas as que existiam. A tentativa de tentar implementar o ensino infantil oficial tinha falhado!

As classes da Tapada duraram 18 anos. O Jardim de Infância da Calçada da Tapada só reabriu em 1987.

Não me digam que não era uma pesada herança, apesar de pouca gente se lembrar dessa figura.

Mas como estamos próximos do Natal aqui vão uns trabalhos relacionados com a época.

As coisas que eu descubro no meu “arquivo”, algumas fazem-me rir como este "Jornal das Notícias", com a capa ilustrada manualmente e impresso com o limógrafo (muito mal impresso por sinal).

Até me apeteceu dizer: - “eu ainda sou do tempo em que havia uns serviços que se chamavam Delegações Escolares, em que o/a Delegado/a Escolar era o elo de controle, dos Serviços Centrais mais próximo dos professores do 1º ciclo e educadores. 

Normalmente eram tratados com bastante deferência.

Pois lá na Escola 157, até havia esse serviço!

Para mim eram colegas com outras funções, que eu normalmente visitava com as crianças para ver se conseguia fazer um dinheirinho extra, como podem verificar pelo seguinte exemplo.  


   

As senhoras aqui referidas trabalhavam na Delegação Escolar.

A prenda que as crianças fizeram para levar para casa foi também o folheto, personalizado para cada família, e uma taça com a sua "searinha"

Mas em Janeiro voltámos a atacar, como se pode ver nas seguintes imagens











E com esta me vou, porque é Natal!
Há dois textos muito longos, e também precisamos de descansar.

Mas antes uma boa notícia, a actual Directora da Escola Raul Lino, (agora assim chamada) fez-me chegar um convite da Junta de Freguesia de Alcântara, para ir visitar a Escola, depois de intervencionada. 
Está linda! integraram as novas funcionalidades que hoje são necessárias, restaurando e mantendo o que era digno de ser preservado.

2 comentários:

  1. Vou fazer uma experiência...Em vez de me por a escrever com todoo cuidado,para mostrar como é importante este teu trabalho,como ele se podia ler ao mesmo tempo que eu contava dos vários sótios onde passava,enfim,quase com diário doque foram os meus anos de trabalho,vou só dizer:adoro ler o teu blogue e aprendo e recordo imenso com ele.Bravo,Ana,deixas as educadoras contentes!

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  2. Maria Carlos, ainda bem que deixo as educadoras contentes, pelo menos as da velha guarda como nós, que mais coisa menos coisa vivemos experiências semelhantes e as podemos recordar.

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