Educadora Sou

No dia 6 de Outubro de 1970, comecei com a minha amiga Margarida Maldonado, uma das educadoras que me tinha aconselhado a ir tirar o curso da Maria Ulrich, a trabalhar num colégio na Parede. Chamava-se “A TOCA”, era essencialmente frequentado por crianças provenientes (como hoje se diz) de um meio sócio cultural médio alto. Situado num palacete perto da praia, era muito organizado. Quatro salas da Instrução Primária e, quatro salas da Infantil. Uma das filhas da dona, fazia a coordenação pedagógica.


Os Centros de Interesse, passaram a chamar-se Temas, trabalhados obrigatoriamente em todas as salas: O Outono, o vestuário, o Inverno, o Natal… provavelmente a alimentação, os transportes, os animais domésticos e selvagens, a Primavera. Não havia tempo para se chegar ao Verão, porque o calendário escolar terminava antes disso, e logo no principio de Junho, era preciso começar a trabalhar para a festa de fim do ano.

Não se podia dizer que estávamos descontentes, mas quase no fim do ano, houve um episódio irrelevante, que contribuiu para desencadear uma mudança profissional. Como já referi, o colégio chamava-se “A TOCA”, e a sua proprietária era a D. Helena Lebre. Aproximando-se o seu aniversário, combinou-se ir, com as crianças do Jardim de Infância, a casa dela cantar os parabéns e levar-lhe presentes.

Como toda a gente sabe, as lebres são assim uma espécie de coelhos, só que correm mais … Para o presente, fiz com os meninos um álbum em cartolina, com uns coelhinhos em algodão, (lá me fugiu a boca…, não eram coelhos, eram lebres!)
Isto agora é um aparte: - Nunca até hoje, tinha reflectido nas possibilidades criativas do algodão, e no seu contributo, para a expressão plástica em educação de infância…

Continuando, chegados a casa da D. Helena, fomos acolhidas por ela, que vestida com um vaporoso negligê azul, nos esperava no alto de um varandim, na escada de acesso ao jardim. Era assim como uma espécie de rainha, recebendo os súbditos!

Mandou distribuir línguas de gato pelas crianças, e disse para abrirmos os bolsos da bata, enfiando-nos lá dentro as bolachas. Sentimo-nos humilhadas… se calhar foi a primeira vez que percebemos o que era isso da "Luta de Classes!"

Foi a partir daí que resolvemos que não queríamos continuar a trabalhar lá.
Começamos a empreender:

- Eu tinha tido o meu primeiro filho, e a Guida estava grávida;
- Não tínhamos onde pôr as crianças; Na altura havia poucas creches na zona;

 Então, com a frescura dos 21 anos, decidimos abrir uma creche, para podermos continuar a trabalhar sem nos separarmos dos nossos filhos.
Como não tínhamos dinheiro nenhum, fomos pedir um empréstimo familiar aos nossos pais – foi recusado!

Mas nada nos demoveu! Pedimos o empréstimo ao banco, e abrimos o “Pássaro Verde”.Tinha só a valência de creche, também não tínhamos dinheiro para mais, infelizmente  essa coisa do dinheiro, já na altura condicionava muito.

Todo o equipamento foi desenhado pelos nossos maridos, os dois arquitectos, e executado pelos quatro, apesar de algumas dificuldades técnicas, dada a nossa inexperiência nas artes da carpintaria. Foi tudo “cuidado” ao mais pequeno pormenor, desde as cores fortes usadas no equipamento, laranja, azul escuro, amarelo, verde alface e rosa saloio, ao logotipo escolhido para a placa de identificação da creche, logotipo esse, que se repetia depois em todos os documentos utilizados, do Regulamento interno, aos relatórios educativos mensais, que junto com os recibos eram enviados aos pais.

Estava também presente, na porta de entrada, num grande pássaro verde pintado,em que o olho do animal, foi substituído por um vidro, permitindo a quem circulava na escada, observar o que se passava no interior.

Em Setembro de 1972, como indicavam os cartazes publicitários, abriu o:

“Pássaro Verde
 No centro da Parede, um serviço para si”.

Visto a esta distância, acho que na altura conseguimos implementar uma instituição inovadora. Inovámos no ambiente, fugindo ao aspecto asséptico vigente, e inovámos também na relação que estabelecemos com as crianças e com as famílias.

Era uma creche …, não sei como é que hoje se poderia  chamar, talvez uma creche familiar, dada a sua pequena dimensão. Era num andar, com um terraço grande, poucas crianças, nós as duas, uma estagiária para a sala dos 3 anos, uma enfermeira em part-time, e duas auxiliares que tinham trabalhado em casa da minha mãe.

Os nossos maridos, antes do trabalho, nas chamadas horas de ponta, ajudavam também a receber as criancinhas. Tentámos que fosse uma instituição muita aberta onde os pais e avós podiam entrar, podiam estar…

Como nos fazia uma certa impressão que as crianças permanecessem muito tempo enclausuradas, saiamos muito, mesmo com os bebés.

Em pouco tempo, a lotação da creche estava esgotada! 

Em termos económicos podia-se considerar que o investimento correu bem, no fim do ano tínhamos o empréstimo totalmente pago.

Mas estávamos tão cansadas, tão cansadas…, não tínhamos ganho nem um tostão.Trabalhámos para pagar o empréstimo.

Foi um esforço demasiado violento para a nossa pouca idade. No fim do ano, completamente arrasadas, na frescura dos nossos 22 anos, resolvemos trespassar aquilo.

Com o dinheiro do trespasse, fomos passear para Londres!Grande viagem...

Ano (lectivo) novo, vida nova. Eu fui para um colégio em Carcavelos, "O Cantinho" e a Guida para o Estoril. Dos bebés novamente para o Jardim de Infância.

"O Cantinho" abriu nesse Ano Lectivo. Como Carcavelos na altura ainda era uma pequena localidade, quase todos  os meus "alunos", eram filhos de amigos ou conhecidos, um ambiente simpático...

Mas novamente os Centros de Interesse, ou os Temas: O Outono, o vestuário, o Inverno, o Natal… provavelmente a alimentação, os transportes, os animais domésticos e selvagens, a Primavera. Continuava a não haver tempo para se chegar ao Verão, porque o calendário escolar terminava antes disso.

Comecei a sentir uma certa saturação. Queria mudar, mas não sabia como. É preciso recordar que ainda se vivia em ditadura, sem possibilidade de reuniões entre professores. Formação Contínua e Acções de Formação eram conceitos inexistentes!

Havia em Lisboa, uma livraria chamada Livrelco, onde por vezes se encontravam livros não aprovados pelo regime e, por isso fora dos circuitos comerciais. Um dia, fizeram-me chegar às mãos um pequeno livro de capa verde. Adorei! Era de um tal Célestin Freinet e chamava-se “Les Tecniques Freinet de l’École Moderne”, falava em usar na escola, as técnicas e os instrumentos  utilizados na vida real.

Tudo em teoria fazia sentido, mas na prática aquilo não se encaixava nos meus conhecimentos. E, entre o querer mudar, e o saber como se fazia essa mudança, algum tempo foi passando. Esse ano lectivo terminou, um outro começou. Eu, a ficar-me pelo querer mudar, mas continuando a ensinar os mesmos Temas.

Era o fim de Abril, por essa altura devia estar a dar o Tema da Primavera, quando se deu o 25 de Abril.

          E Depois do Adeus… Grândola Vila Morena!
          Aqui comando operacional das Forças Armadas…

          
          Marcelo Caetano rende-se no largo do Carmo. 




                  O Povo está com o MFA



                                                         Chegam Soares e Cunhal

                             
                                 
                                Meu Camarada Soldado, Camarada Marinheiro...




             


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E foi a grande festa pá!




  E o povo em festa gritava:

 "O Povo Está Com o MFA"
"O Povo Unido Jamais Será Vencido"
"Habitação, Saúde, Educação"

E a festa continuou até ao fim do Ano Lectivo.
Pouco se trabalhava na escola. A criançada corria alvoraçada pelos recreios, gritando palavras de ordem, de punho erguido ou fazendo com as mãos o V de vitória.

E o Ano Lectivo chegou ao fim.

E em Outubro, mais um Ano lectivo começou. Tudo fervilhava à minha volta, e eu, a ficar-me pelo querer mudar, mas continuando a ensinar os mesmos "Temas"…

Até que um dia fui a uma exposição na Escola de Magistério Primário de Lisboa.

Havia lá uma sala com trabalhos de crianças, em tudo diferentes do que eu tinha visto alguma vez! Estavam organizados em livros policopiados, em álbuns. Nas paredes pinturas e desenhos das crianças.

Fez-se luz no meu espírito! Aquilo tinha qualquer coisa a ver com o livro do tal Freinet…

No fim da exposição, um cartaz afixado referia:

VAI REALIZAR-SE EM OEIRAS
UM ESTÁGIO DE INICIAÇÃO ÀS TÉCNICAS FREINET
INSCREVE-TE PELO TELEFONE… (mais tarde vim a descobrir que era o telefone da Manuela Castro Neves)

Telefonei. Mas comunicaram-me que já não havia vagas.
Bem educada, não insisti. Continuei a ficar-me pelo querer mudar…
E o Ano Lectivo chegou ao fim.

Mas a vida não era só feita de escola. Havia reuniões diversas, festas com cantos livres, ocupações de casas, sessões de cinema. Luís Filipe Rocha, que eu já conhecia de outras andanças, realizou o primeiro filme: “Barronhos, quem tem medo do poder popular”, filmado num bairro de barracas perto da Outurela, Carnaxide. Girava à volta da organização de uma cooperativa de habitação. Aquilo mexeu comigo!

Quando uma colega me desafiou para ir trabalhar para o Centro Social e Paroquial Nossa Senhora da Conceição, na Outurela, hesitei um pouco. Não deixava de ser estranho, na época revolucionária, uma pessoa ir trabalhar para um Centro Social e Paroquial, ainda por cima, não sendo eu já católica praticante.

No filme, o Centro aparecia bastante mal tratado… mas, como me foi dito que tinha havido grandes alterações, desde a mudança da freira directora, ao projecto pedagógico que se queria desenvolver, lá fui eu. Disse-lhes que não era católica, e não sabia se me aceitavam nessas condições. A Irmã Piedade, que era na altura a nova directora, disse que iríamos  conseguir conciliar as coisas. E de facto assim aconteceu!

Durante os três anos que lá estive, considero que apesar das nossas diferenças, a irmã Piedade foi uma pessoa que me marcou,  ajudando-me a ter outra visão da realidade, a saber conviver com as diferenças, e a ser mais tolerante.

Aqui, entra novamente a Guida, a amiga que tinha tido a creche comigo. Nesse ano lectivo ela tinha ido trabalhar, para um jardim-de-infância que havia na Estação Agronómica, em Oeiras. Estava encantada com o trabalho que lá se desenvolvia. 

Aos sábados havia reuniões, abertas a educadoras da zona, para se mostrar e discutir o trabalho que lá se fazia.

Ela desafio-me para assistir. Vim a saber mais tarde, que eram reuniões do Movimento da Escola Moderna. Lá comecei a ir, e a participar mais activamente. Mas entre o participar e o praticar, ainda vai uma grande distância…

Na altura “Modelo” era uma nomenclatura que não era usada, só apareceu posteriormente…, a incidência era posta nas técnicas Freinet.

Comecei a mudança pedagógica, com uma reorganização da sala, ainda muito incipiente, ainda não entendia muito o porquê da  necessidade da organização do espaço e dos materiais. Estava fascinada com as técnicas!

Arranjei um limógrafo, (Instrumento que permitia policopiar de forma artesanal um número relativamente grande de exemplares, foi usado na Imprensa clandestinaum rolo, tintas… mas acho que o meu grande salto aconteceu, a partir das saídas ao meio envolvente, com as crianças e aproveitar essas saídas para o trabalho na sala.



Relato de um passeio e um texto livre - Páginas do 1º jornal escolar


Foi também na Outurela que me apercebi de facto da importância do saber ler e escrever. Tínhamos conseguido fomentar um contacto informal com a população do bairro. A porta estava sempre aberta, e as pessoas entravam e sentiam-se lá bem. 

Quantos dias passados com os meninos, à soleira da porta (reminiscências  Alentejanas daquela população?), ouvindo a Ausenda cantar, o sr. Zé Branco a contar histórias, e as conversas de uma muda, tia de uma criança, que gostava de conversar na sua linguagem gestual, com os meninos a imitá-la, e ela a rir-se  satisfeita, embora por vezes fingindo que estava zangada, correndo atrás deles.

E com as conversas vinham as notícias de pequenos acontecimentos, que a percepção das pessoas levava a considerar que podiam ser aproveitadas pelas crianças:
      - Amanhã vou tosquiar as ovelhas. Venham ver.
      - Já nasceu um bezerro na vacaria.
      - As rãs já cantam no charco!

Mas, comecei também a verificar que as pessoas nos procuravam, para que lhes lêssemos cartas, ou para lhes descodificar “papéis” recebidos de organismos oficiais. Não vale a pena entrarmos com dados estatísticos, até porque não os tenho, mas grande parte daquela população adulta era analfabeta.

Aquilo mexeu comigo! Percebi de facto como era importante dominar a leitura. Também percebi, que aquelas crianças, provenientes de famílias onde não havia esses hábitos, iriam ter grandes dificuldades na escola.

Voltemos agora à formação inicial de educadores e professores. Eu tinha saído com a ideia de que no Jardim de Infância, não se devia ensinar as crianças a ler e a escrever – isso era uma tarefa da Escola Primária.

Os livros infantis eram poucos, e tínhamos aprendido a valorizar mais o “oral” do que o “escrito”, e em relação à escrita, fazíamos uns exercícios propedêuticos, os grafismos. (lembram-se que era a teoria dessa época?)

Assim eu, de facto, nada sabia dos processos de aprendizagem da leitura e da escrita. Embora dando os primeiros passos, no que se chamava na altura Método Natural de Iniciação à Leitura e Escrita, aquilo que eu fazia ainda não encaixava…

E como queria aprender mais, vi anunciado um curso de "Iniciação" e lá fui eu.

O tempo foi passando, e no final do terceiro ano lectivo da Outurela, fui pela primeira vez, apresentar um trabalho no Congresso do Movimento da Escola Moderna, realizado na Comuna.

Era a descrição de uma saída com os meninos à vacaria, e o trabalho que se desenvolveu posteriormente. Na sessão estava a assistir uma colega, a Guida Faria que trabalhava na escola “Voz do Operário” da Ajuda. Passado uns dias, telefonou-me, dizendo que tinha gostado muito do meu trabalho. Desafiava-me a ir trabalhar com ela, porque ia haver um lugar no Jardim de Infância, e queria que eu integrasse a equipa.

Fiquei um bocado aflita, porque de certa maneira, agarrava-me às coisas e às pessoas, e tinha alguma pena de as deixar. Foi a irmã Piedade e as colegas, que quando lhes pus a questão, acharam que eu não podia perder essa oportunidade.

Na altura ia até ganhar muito mais do que eu estava a receber ali. Telefonei a aceitar  e lá fui, de malas a aviadas, para a Voz do Operário da Ajuda.





2 comentários:

  1. Conheço a história toda mas gostei muito de a ler aqui tão bem que a contas.
    Na verdade o percurso já vai longe e tem sido interessante e profícuo. Boa! Ainda bem que fiz parte desta história!

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  2. Que bom, estares comigo há tanto tempo.!

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